
Articuladas entrevistam Monica Cunha
Na publicação “Mulheres, Resistências e o Marco da Violência Institucional” as Articuladas entrevistaram mulheres que têm amplificado o debate sobre a violência institucional (VI) em suas áreas de atuação profissional e trajetórias políticas. Uma das entrevistadas foi Monica Cunha, mulher negra, mãe de três filhos; educadora social e fundadora do Movimento Moleque. A partir da sua história de vida e do compartilhamento dos aprendizados obtidos ao longo da militância Monica Cunha fez importantes reflexões sobre a articulação entre o racismo e a violência institucional.
Articuladas_ O termo violência doméstica vem ganhando espaço, está no centro do enfrentamento feito pelas mulheres. Para iniciar nossa conversa, seria bacana saber como vocês se aproximam desse tema, os sentidos dados à violência institucional, as raízes históricas e as formas de ocorrência entre nós.
Monica Cunha Trago o exemplo do meu cotidiano, que é o da violência perpetrada pelas instituições policiais. Sabemos que dentro daquelas fardas têm seres humanos, que foram gerados, paridos e criados para outro futuro. Mas a partir do ingresso na corporação, pensando no sustento, ser um funcionário público com estabilidade, ele vai se tornar o que a instituição, aquele sistema, quer que ele se torne. Acaba perdendo os vínculos de onde veio, quem ele é. Passa a ser um produto do sistema e tem de agir dessa forma. A institucionalidade traz por herança o racismo e o racismo traz a violência. Não tem racismo que traga beijo. O racismo é violento. Isso também acontece na saúde, na educação. Quando você se deixa levar totalmente e faz da institucionalidade não um meio, mas o fim, se torna
a própria institucionalidade.
Articuladas_ E como vocês têm articulado o enfrentamento da VI nas atuações profissionais, na militância e nos territórios?
Monica Cunha Minha militância começou quando meu filho do meio, sou mãe de três homens, então com 15 anos, se torna um adolescente autor de ato infracional. Então fui buscar informações, saber mais sobre o que estava vivendo. Até então acreditava que criaria meus filhos como todas as mães, tinha sonhos e expectativas, queria cada um em uma instituição das forças armadas. De uma hora para outra, todo esse sonho e expectativas ficaram só na imaginação, as coisas não eram bem assim. Chego na militância para entender, num primeiro momento, para me entender. A partir daí se abre um leque e percebo que não era a única, que não estava restrito à Mônica e ao Rafael. Um cotidiano de mulheres como eu, negras e periféricas. Aquilo que estava me acontecendo fazia parte do cotidiano das mulheres de onde vinha e resolvi não aceitar de braços cruzados. Nós temos o direito de parir, construir família e ver os filhos crescerem. Isso é normal, é possível. O que não é aceitável, é anormal, é mulher preta perder filho assassinado ou encarcerado todos os dias. Descobri nessa loucura o que é uma VI, me reconheci enquanto mulher negra e fui ao encontro da minha história de vida, dos meus ancestrais, da religiosidade da mulher de axé.. Entendi que o racismo é o motor de tudo isso e que, se tivermos consciência, podemos sonhar no fim.
Articuladas_ O debate em torno da violência institucional tem revelado novas interlocuções e, por isso mesmo, outras perspectivas e incidências. Como avaliam essa ampliação do debate público?
Monica Cunha Isso é fruto das lutas da sociedade civil, dos movimentos sociais. Saímos do lugar do silenciamento, dissemos basta. Isso tudo com muito esforço, principalmente, da juventude negra, que está cobrando por esse lugar, juntando a vivência acadêmica às práticas dos ancestrais. Uma cobrança de pertencimento. Isso faz com que venha à tona todo o racismo. Mas é fato que a violência institucional começa a mudar, em movimentos lentos, embrionários. Leva tempo pra acontecer e quando acontece também não é o que deveria ser. A gente está conseguindo mostrar as falcatruas dos políticos, dos engravatados, os roubos que sempre aconteceram, temos condições de afastá-los de seus cargos, mas isso não resulta em mudanças estruturais. São perspectivas para um futuro distante, meus netos e bisnetos viverão num país sem racismo e de valorização de uma cultura antirracista.
Articuladas_ Quais são os setores que vocês percebem a VI se manifestando de forma mais contundente em relação às mulheres? E quais iniciativas de enfrentamento, contexto do Rio de Janeiro, destacariam como positiva?
Monica Cunha Para nós mulheres, mulheres negras, é difícil dizer onde passamos mais violência. Mas vou dizer de um lugar que considero o pior, mesmo sabendo que os outros são terríveis, o sistema carcerário. Tira tudo da gente, ser mulher, ser mãe, ser pensante. Tira tudo e nos coloca como um apêndice daquele homem que comete o delito. É só abandono. Não enxergam a mãe, a grávida. Uma institucionalidade perversa, desesperadora. A luz no final do túnel é ver todos esses movimentos das mulheres, que nascem a partir da família, a dizer que não vamos tolerar isso. Queremos ser enxergadas e tratadas como seres humanos.
Articuladas_ E em termos de Brasil, alguma iniciativa que seria interessante ver difundida...
Monica Cunha Nós temos que saber que lugar é esse, que país é o Brasil, o que de fato nos devem. Como podemos ter tantas leis que não são cumpridas, leis que não são colocadas em prática. A gente acaba perdendo tempo de luta para fazer valer o que já está escrito. Foi aprovado na ALERJ o Projeto Agatha, que prevê a prioridade na investigação dos crimes cometidos contra crianças e celeridade na tramitação judicial. Muito importante esse debate, mas é um absurdo, um retrabalho, porque já está lá na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas nada disso é cumprido. Mas não é cumprido pra quem? Para as crianças pretas. Por isso precisamos de negros nos espaços de poder, conscientes, para lutar e fazer valer as leis existentes. A gente precisa
cada vez mais conscientizar os nossos. Preto, favelado, pobre, periférico, tem de saber do pertencimento com o lugar, que as coisas que acontecem com a gente não são sem querer.
Articuladas_ Diante do contexto da Covid-19, os governos e instituições foram instados a atuar de forma rápida, organizada e diversificada para reduzir os impactos da doença. Mas não foi isso que observamos. Desvios de recursos públicos, ausência de incentivo financeiro às/aos desempregadas/os, descontinuidades de programas de saúde, aumento das incursões militares em favelas e nas periferias, ameaças sistemáticas de redução salarial e desemprego alarmante. Diante desse cenário de violações de direitos, quais as suas expectativas para 2021?
Monica Cunha Espero, e torço, para que em 2021 a gente sorria mais e chore menos. A pandemia iluminou aquilo que a população negra sempre soube. As pessoas ficaram apavoradas vendo as filas quilométricas nas agências da Caixa Econômica, em sua maioria de mulheres pretas, em busca do auxílio emergencial. O temor de uma catástrofe sanitária no sistema carcerário, nas unidades socioeducativas, nas favelas, com a chegada da Covid-19. Estou falando de espaços que desde sempre foram esquecidos e são constituídos, majoritariamente, de pessoas negras. A partir da mobilização da sociedade civil, das pessoas da favela, dos jovens nas favelas, dos movimentos que atuam nos sistemas carcerário e socioeducativo, por exemplo, se iniciou uma articulação com outros poderes, dentro e fora do país. Os gestores tiveram de se mexer, foi pouco, mas poderia ter sido muito pior para nós. Mas a gente sabe bem quem está morrendo, os mais afetados. Hoje, morremos do tiro do braço armado, de feminicídio
e de pandemia. São as mazelas do racismo, que atingem nossos corpos, nossas histórias. Mas como a gente vem de um povo que é resistência, não vamos nos deixar vencer desta forma. Estamos há mais de 500 anos nessa luta. Não vamos deixar barato, não deixamos antes e não será agora. Seguiremos guerreando, de punho cerrado. A gente vai continuar vivo.
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